Pesquisadora do projeto acompanha cúpulas sobre sociedade da informação e inteligência artificial
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Em Genebra, entre os dias 27 e 31 de maio de 2024, duas cúpulas organizadas pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), braço da Organização das Nações Unidas (ONU), em cooperação com outras agências da ONU e parceiros, trouxeram novamente à tona debates sobre tecnologia e sociedade: a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (WSIS+20, na sigla em inglês)[1] e a Cúpula AI for good[2]. Bolsista de pós-doutorado da Universidade Federal de Sergipe (UFS), no bojo do projeto Obscom-Plataformas, Helena Martins, que atualmente pesquisa a regulação econômica das plataformas digitais na União Europeia, acompanhou as cúpulas in loco.
Ambos os eventos foram tratados como de “alto nível” e reuniram representantes de países, das principais corporações de plataformas e desenvolvedoras de IA, além de, em menor quantidade, sociedade civil e academia. A UIT anunciou que a primeira cúpula teria o objetivo de fazer um balanço das conquistas e das principais tendências, desafios e oportunidades desde o Plano de Ação de Genebra em 2003. A segunda seria focada na identificação de soluções práticas baseadas em inteligência artificial (IA) para promover os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
Em relação à Cúpula da Sociedade da Informação, há vinte anos havia uma visível disputa em relação à lógica de digitalização da sociedade, embora seu sentido predominante fosse de viabilização da expansão capitalista para outros setores, como a cultura, o uso do conhecimento como ativo e a utilização de tecnologias com vistas à flexibilização da produção e do mundo do trabalho. Expressão disso, a sociedade civil esteve, então, bastante articulada, chegando a apresentar uma resolução complementar que defendia que a internet fosse centrada nas pessoas, que fosse criado um fundo de financiamento multilateral para auxiliar os países “em desenvolvimento” e também espaços de governança que contassem com a voz da população. Essa agenda avançou em relação à governança, com a criação, depois da segunda rodada da cúpula, em 2005, do Fórum de Governança da Internet (IGF, na sigla em inglês). “Agora, a acirrada disputa geopolítica e a desigualdade de poder em relação às corporações de plataformas digitais limitam até mesmo as discussões. O que temos são caminhos definidos pelas corporações, obviamente em parcerias com os governos de seus países”, pontua Martins.
Na Cúpula IA for Good, as Nações Unidas buscaram se apresentar como o espaço potencial para a governança da IA. “Juntos, podemos aproveitar a IA para ajudar a alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável e não deixar ninguém para trás”, afirmou Guterres, ao defender a coordenação global da IA. Sob sua liderança, a ONU criou, em 2023, um grupo consultivo de alto nível e multissetorial para tratar do tema. Antes, já havia criado o Pacto Digital Global, com foco em questões sobre conectividade, fragmentação da internet, proteção de dados, direitos humanos online, digital commons e regulamentação da inteligência artificial. Martins detalha que entrevistados durante a Cúpula, representantes de governo e de organizações da sociedade civil, apontaram que as Nações Unidas, todavia, não têm conseguido firmar tal liderança, mas esse processo não está pacificado. No grande palco, um dos convidados da abertura foi o gerente geral da China Mobile, He Biao, que deixou nítida a disposição para, “sob a liderança” da UIT, construir um consenso em torno de uma governança global que facilite o desenvolvimento sustentável da IA e impactos positivos para as sociedades. A ausência de coordenação remete ainda para desafio para a manutenção da internet aberta, seja por posições protecionistas em torno de aplicações de terceiros ou pela criação de tecnologias incompatíveis, por exemplo.
“Apesar do discurso tecnosolucionista, os dois eventos evidenciaram preocupações sobre a disputa em torno do desenvolvimento da inteligência artificial, particularmente entre China e Estados Unidos, e também quanto aos riscos que a IA pode gerar, entre os quais a ampliação da crise”, detalha Martins. A abordagem mais abrangente em relação aos impactos da IA foi apresentada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Representante do fundo, Gita Gopinath deu o seguinte título à sua apresentação: “Amplificadora de crise? Como evitar que a IA piore a próxima crise econômica”. Gopinath apresentou três elementos centrais que podem fazer com que a IA exacerbe as crises econômicas: impacto nos mercados de trabalho; perturbação nos mercados financeiros; impactos nas cadeias de suprimento globais. Em um contexto de crise, a IA pode ser utilizada para substituir trabalhadores, gerando mais desemprego, inclusive em países ricos e em relação a trabalhadores qualificados. Como os mercados financeiros funcionam com base em muitos procedimentos algorítmicos, alimentados por dados, que refletem o momento anterior, podem fomentar decisões erradas em relação a investimentos. A IA generativa, no mesmo sentido, ao ser introduzida na dinâmica de amplo conjunto de empresas, também pode impactar escolhas sobre cadeias de suprimento, em um contexto de crise, explicou a representante do FMI, que acabou desefendendo políticas de proteção social – em uma clara mudança em relação à defesa da austeridade que pautava suas políticas há anos.
Helena Martins resume que “os elementos apresentados, na verdade, confirmam o que há tempos vem sendo apresentado pela Economia Política da Comunicação. Como ensina César Bolaño, o ponto central da mudança no capitalismo desde os anos 1970 é o avanço da subsunção, particularmente da subsunção do trabalho intelectual, e a intelectualização dos processos de produção e consumo, processos nos quais as tecnologias da informação e da comunicação adquirem um protagonismo crucial. Tudo isso potencializa as capacidades de reprodução e mercantilização da cultura, além da manipulação política. A IA representa, nessa trajetória, a possibilidade de aprofundamento, o que sabemos que pode ampliar as contradições sistêmicas – afinal, sem trabalhadores e salários, não há produção de valor nem mesmo capacidade de realização daquilo que é produzido”.
No próximo semestre, o relatório do Obscom-Plataformas sobre a situação da União Europeia nesse contexto deverá ser divulgado.